sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Filhas de Eva (crónica de João Teixeira Lopes no P3)

Da feminização da população activa aos direitos sexuais e reprodutivos; da entrada em força nas profissões de onde estavam excluídas (por uma suposta “natureza biológica” que determinava uma “vocação social”) à predominância quantitativa e qualitativa (em termos de sucesso escolar) nos vários níveis de ensino, tudo parece confluir para que consideremos a alteração dos lugares e das identidades femininas como uma das mais explosivas mudanças sociais das últimas décadas.

Mas, nas entranhas das rupturas, permanecem os paradoxos de um país onde se vive uma estranha mescla entre o rural e o urbano, o arcaico e o moderno, o preconceito e a emancipação. Portugal não segue, para desespero dos mais ortodoxos, modelos clássicos de evolução social.

Elas são melhores em termos de resultados escolares. Mas são também tendencialmente mais submissas à disciplina e à ordem escolar. Nas empresas, mesmo quando detêm uma certificação escolar e níveis de autonomia e até de autoridade homólogos aos dos seus colegas masculinos, continuam a auferir remunerações inferiores. Quando é necessário contratar contingentes de mão-de-obra flexíveis, intermitentes e polivalentes, elas são as preferidas, prolongando a velha crença de que, sendo mulheres, arrecadam o segundo salário, logo, o subalterno no seio dos rendimentos familiares.

As tarefas educativas das políticas públicas – escolas, departamentos educativos de museus, bibliotecas; etc. – são-lhes preferencialmente confiadas, numa aproximação, nada subliminar, à ideologia maternal (na sua dupla vertente: educar é feminino e educar deve ser mal pago, porque pode e deve conciliar-se com outras tarefas).

Mesmo nas famílias, onde o casamento é cada vez mais um projecto e o divórcio um ajustamento; em que as relações sexuais pré-conjugais separam sexualidade e procriação, em que a divisão sexual das tarefas surge retoricamente como inexorável – mesmo aí, ei-las a acumular tarefas, a conciliar trabalho e carreira (quando a há…), lides domésticas, educação dos filhos, cuidado dos mais velhos e lazeres.

Na esfera da apresentação de si, libertam-se um pouco das correntes da “boa aparência”. Mas a tirania do corpo perfeito; a obrigação de certas posturas e roupagens; o “trabalhar” da “máscara” e do “look” – é sobre si que apertam. Não por acaso, os casos de anorexia, em que a pressão social da perfeição corporal performativa atinge o paroxismo, são em larga parte femininos. Sexualmente hedonistas, representam ainda assim os afectos como uma certa legitimação da sua expressão erótica.

Até nos usos da Web 2.0, as diferenças irrompem: elas passam menos tempo na Net (porque as tarefas são múltiplas), gerem a sua identidade com precaução e privilegiam a comunicação aos negócios. Emancipação mitigada, dir-se-ia, e em tempos descontínuos. Paradoxo dos paradoxos, sabe-se agora que as jovens portuguesas, que vão preferindo a união de facto e casando tardiamente, são, a nível mundial, das que menos filhos têm.

Uma vez mais, misturam-se laivos de desenvolvimento (controle da natalidade; dissociação entre conjugalidade, casamento e reprodução) com entraves de atraso estrutural (não há dinheiro para ter filhos, habitar casa própria e construir um percurso de autonomia). Este país desafia os estereótipos sociológicos e é um laboratório fascinante de estudo. Mas cansa, na sua injustiça. Elas que o digam.


Texto de João Teixeira Lopes (sociólogo e docente na Universidade do Porto)
Fonte: P3

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